segunda-feira, 23 de junho de 2014

Nuestras hermanas



Em 2011 (ou terá sido 2012?) fiz uma interrupção voluntária da gravidez. Por cá e depois de uma longa luta, foi possível fazê-lo legalmente. Eis alguns factos: fui a uma consulta num centro de saúde para ter um papel e um carimbo para poder ir a um determinado hospital. No hospital, é preciso responder a um questionário que, sem ser directamente moralizador, o é nas entrelinhas (rastreiam classe social, promiscuidade e etc.), mais umas análises assim e uma eco assado. Seguem-se duas semanas de reflexão compulsória que, como o próprio jogo de palavras faz antever, é uma contradição de termos e de uma condescendência atroz. Voltas depois desse tempo e desces as escadas para a sala das abortadeiras - logo ali no corredor das consultas pré-natais. Dão-te a escolher com dor ou sem dor. Sem dor é cirúrgica e, no meu caso, tinha de esperar mais duas semanas - o que já faria quatro ou cinco desde que tinha decidido abortar. Com dor é química. Escolhes com dor porque, convenhamos, nem mais um segundo a tentar empatar, por favor! Dão-te um comprimido que tomas logo ali. Depois levas outro (ou eram outros?) para tomares dali a 48h (ou seriam 24h?). Vira-te do avesso e pronto.

Sejamos claras e acabemos com mitos: eu não me arrependo e não é verdade que nunca mais esqueces cada pormenor (eu esqueci vários).

A nossa lei tem problemas. Um problema sério é o de ter medicalizado uma questão de liberdade: as questões de saúde pública tratam-se nos termos que o pessoal médico determina; as questões de liberdade não. Outro problema é o limite de tempo. Traduzindo por miúdos, a questão do tempo pode ser resumida da seguinte forma: a partir de quando é que o direito do feto se sobrepõe ao direito da mulher?

Em Portugal, o direito do feto sobrepõe-se ao direito da mulher a partir das 10 semanas. A partir das 10 semanas, estás fodida: o teu corpo passa a estar sob jurisdição do estado.

Nuestras hermanas assistem a tramitação legislativa de secretaria - "Ley Orgánica de Protección de los Derechos del Concebido y de la Mujer Embarazada" - que diz que a partir do momento da fertilização do óvulo, o corpo da mulher está sob jurisdição do estado; o corpo da mulher deixa de pertencer à mulher (se é que alguma vez até essa fertilização tenha pertencido) e o estado garante a sua "defesa" contra a vontade da própria mulher, bem como de preservação do ser em potência contra a potência de uma vontade conscientemente viva.

Às vezes não é preciso navegar nos meandros da subjectivação, da ontologia, da imanência, do pós-modernismo e do pós-pós-modernismo para encontrar o biopoder. Às vezes ele é híper-literal.

1 comentário:

  1. Um retrocesso de 30 anos. A primeira lei a permitir o aborto em Espanha foi em 1985, lei que permitiu também a muita gente do nosso pais interromper a gravidez em segurança nesse país. Será agora ao contrário por algum tempo. Em tudo a politica no país vizinho transparece as fraturas profundas sempre presentes e dispostas a rebentar em ajustes de contas. Um referendo sobe a República /Monarquia proibido, um juiz afastado por querer investigar crimes da guerra civil, uma lei proibicionista como a do aborto ser desenterrada

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